quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Ciúme turquesa

Rogo-te, meu anjo
Que não me acenes com correntes

Água de gelo
No teu corpo encandescente

Confia, arcanjo
Na tua rude princesa

Tens que perdê-lo
Esse ciúme turquesa

Corpos
Cortados pelas águas
Mortos
Pela mágoa

Sente-me
Debaixo de fogo
Toca-me
Aqui onde eu moro

Casa zangada

Estou tão cansada desta cara descrente que guardo para ti quando fazes esse sorriso enjoativo ao nosso diálogo esburacado. Que expressão retorcida... Não a reconheço.
Calando pensamentos contraditórios, fica muito pouco para dizer. E olha para as nossas caras coniventes, hesitantes, paranóicas!
Trocamos palavras amáveis baixinho. Comemos à mesma mesa, educadas. Foste sair com este frio? Se quiseres, não tempero a salada. Não gosto de fígado. Se calhar era melhor perguntares-lhe o que ele pensa sobre o assunto.
Sublinhamos o facto evidente de sermos preto e branco com silêncios ressentidos. Que seria mais penoso que sorrir a esta casa zangada?
Não sorrias, hipócrita. Celebra as nossas diferenças. Despreza o tecto a que somos obrigadas. Grita-me as nossas desavenças. Não escondas que os nossos caminhos se cruzaram por engano. Sê louca e ri-te de mim. Devolve-me um olhar mais frio do que o meu. Acorda para a raiva, odeia-me.
Aí poderei sorrir
. Que alívio.

sábado, 25 de agosto de 2007

Just a little joke

No alto da torre, ela aguardava glória de mel
Fora-lhe prometido um príncipe, uma espada de ferro, um belo corcel
Cem luas se foram enquanto lia um calhamaço de papel
Da janela tudo o que via era o dragão cruel...

«Será meu destino esperar por alguém?» - Indignou-se ela
Guardou o diadema, o vestido e os sapatos de fivela
Um assobio ao dragão e estava em cima da sela
Voou para o sol, renegou Cinderella!

Silêncio

Silêncio veste-se de preto quando tem razão e de branco quando não sabe o que vestir.

Peças colocadas no lugar a que pertencem engolem depressa o crack! indistinto que, de outra maneira, se perderia logo que rebentasse a linha do som...

De dentro do armário, salta a vestimenta de negritude, tão fresca e apetecível, e cala com um gesto a vergonha de estar simplesmente nua.

Silêncio obscuro, meu porto seguro de vozes ingratas.

Silêncio emprestado é largo e apertado nos sítios mais estranhos. Porque és pálido, soas e ecoas, nem devias ser chamado silêncio! De boas intenções artilhado, brincas comigo!... Mais valia estares calado.

Silêncio...
Mais valia estares calado!

Olho

O primeiro olho viu um homem comum
O segundo olho viu-o tirar Excalibur
O terceiro olho viu o amigo de um
O quarto olho fechou e fez jejum
O quinto olho não viu mais nenhum

Lapso de memória
Não são cinco olhos, cinco histórias.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Provas

Dedo de escudo num corte profundo
Segundo no tempo que escorre saliva
Tirada cruel que bate fundo
Tirarem-me
daqui comia-me viva

Coração arremessado para o vazio
Mãos de pianista que toca sonata
Olhar escaldante num corpo já frio
Perdão que não cura mas mata

Lápis que risca o papel rugoso
Última gota no copo cheio
Anjo fiel que vingas zeloso
Denúncia de um esgar feio

Ambos sabemos o feitiço
Ambos rejeitamos as sobras

Não chega. Preciso de provas.

Casa de espelhos

A tua cara nada num mar de espelhos e a tua boca fala baixinho comparada com os segredos espelhados para minha desgraça. Calo estes silvos acusatórios com um beijo amargo nesses lábios de sangue e eles dormem, comidos pelo espelho dinâmico. Tu não fazes mais do que erguer a sobrancelha, sabendo que os segredos falam mais alto do que nós. Tortura aprazível. As quatro paredes, o tecto e o chão de vidro apertam-nos sob todos os ângulos e o que eu engulo e não digo acaba de se espelhar nesta suave transparência de luz. Somos tão belos quando jogamos ao faz de conta.

Mal necessário

Ironia a da natureza que corta cabeças
Perigo iminente para que não adormeças
Doce ignorância para que nunca te esqueças
Do mal necessário

Dor crucitante, baixa de guerra
Pele de cadáver deitada por terra
Capítulo da vida que agora se encerra
Sem X no calendário

Poupar-te do desdém que guardo em mim
Sem adeus definitivo, antes assim
Não celebramos humilhação em grande festim
É secundário

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Flor moribunda

Flor fugitiva
Na sombra descansas tranquila
Selectiva
Abres-te com peso e medida
Colorida
Hipnotizas quem te procura
Comedida
Aguardas somente a frescura


Flor perfumada
Oculta à vista cansada
Adorada
Dás todo o teu corpo de fada
Fecunda
Anseias imortalidade
Moribunda
Apelas à actividade

À actividade

Nirvana musical

Comecei a tocar estas músicas sem saber que cada nota era eu e que cada acorde me enchia um pouco mais por dentro. Peguei nesta noite dourada e colei-a na pauta e tu entraste na onda e tocaste por cima de mim. Tocaste o teu som na minha pauta nesta noite de deuses: duas almas unidas por um fio de corda.
Estes ruídos hipnóticos ganham forma à medida que nós lhes acrescentamos mais e mais sentido e este momento acabou de entrar para a posterioridade em vibrato nas guitarras e na minha vida. A batida ecoa nos nossos peitos alucinados : efeito sem causas sobre as quais valha a pena pensar. Neste momento, tudo aquilo que somos dança no ar e ri-se : Nirvana Musical.

Amigo

És o meu pote de segredos.
O amuleto por baixo da camisola que agarro nos momentos importantes.
És tesouro escondido em gruta deserta.
És a cartada que guardo para o fim.
És a sombra sempre presente.
Aquela parte de mim que nunca muda.
És a batida final da sinfonia.
O grito de pasmo da borboleta transformada.
És fogo que molha em noite de loucura.
És o brilho do nada.
És a cura para a doença desconhecida.
És o berço livre de mácula.
És o fantasma da ópera por trás de cena.
És o meu precioso deus.
Nasce no teu peito
Corre nas veias direito
À boca, como quem grita
Estás morta, estás viva
Acorda e verifica

Sombra que se repete em espelhos quebrados
Beijos doces em olhos queimados
Pétala de sangue promete inverno maldito
Certeza incerta em forma de grito

Caixa enterrada em noite de luar
Adeus refrescante para não mais voltar
Arco-íris vaidoso, tão alto, tão louco
Rebenta comigo, ainda é tão pouco!

Mar de letras desenhadas num sonho
Mentira velada por um sorriso medonho

Carrossel que prende o olhar de fugida
Pergunta inútil numa boca esquecida

Suspeita bendita
É fogo que se avista
Do alto do meu orgulho

Nas chamas mergulho
Nas chamas mergulho!

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Hoje dei por mim a pensar na inevitável deixa «no fundo, todos acreditamos em contos de fadas». Alguém está a falar de algo e logo se impõe – por vezes, nem é preciso alguém dizê-lo – essa convicção de que o ser humano é frágil e está impregnado de emoções que precisam de ser partilhadas. Como se o mundo se regesse por pequenas regras. Como se a intimidade não aconselhasse o melhor ouvinte a esperar pelo momento certo para se mostrar, em todo o seu esplendor.
Quando menos se espera, esse sentimento infiltra-se a pouco e pouco, pairando no ar, enrolando pessoas e afins numa grande bola de drama que deixa alguns pobres coitados sem saber o que dizer e o que fazer com o momento constrangedor...
Para ser realista, tenho que admitir que me interesso e esqueço. Não é preciso bater a mão no peito por causa disso. Não há nada digno de piedade no ser humano. A piedade desqualifica uma pessoa, retira-lhe qualidades. Descaracteriza alguém rico em complexidades. Mais do que isso, a piedade distorce e reduz o objecto a um nada repelente.
Uma das coisas mais interessantes que tenho vindo a descobrir é que é importante saber perder. É importante perceber quando já não há mais nada a ser feito e não adianta cansar uma mente torturada. É importante admitir quando não está nas nossas mãos.
O melhor conselho que recebi até hoje em verdadeira crise foi deixarem-me em paz. Gritar, pensar, dormir sobre o assunto. Sem palmadinhas nem frases feitas nem contos de fadas.