domingo, 30 de setembro de 2007

Nova Era

Mais crítica social.

Poças de água
Calçada de pedra aromática
Faróis de luz apagada
Prédios enegrecidos
Sacos de compras
Montra exacerbada
Beatas
Disse-o e repito!
A multidão desvairada
Sedenta do próximo vício
Morre menos
Consumada à bruta!
Dêem-me luta!
Quero tudo, tudo!
Quero e desespero
Por mais um pouco!

Louca cadência
Espectáculo de luzes
Orquestra moderna
Cinema
(Dilema!)
Pó e batom
Cerveja
Bourbon
Candeeiro de rua
Viagem eterna
Passo a passo
Adianto
A realidade é falsa!
Descalça!
Antiquada!
Moralista!
Não tenho tempo!
Deus?
Há muito que morreu
Em suplício
Sacrifício!
Pff!

Entre Artes
Letras
Praia
Piscina
Surtidos
Batidos
Slogans

Discotecas
Bibliotecas

No ritmo tão rápido só meu
Esqueci-me de ti, meu amigo!
Esqueci-me de ti!

domingo, 23 de setembro de 2007

Perséfone

No dia em que ele veio, Cora viu o chão abrir-se diante de si. Um pé pálido e uma mescla de cabelo ruivo selvaticamente engolidos pelo solo em rasganço. Inédito: a terra tremia. O príncipe das trevas aproximava-se.
Caindo, Cora dizia: «Sei que te julgas superior à dor e ao sacrifício dos mortais, sei que nada sabes de humildade, sei que vingas almas entregues a apetites e imprecações, sei quem tu és, senhor. Aos meus olhos, não és mais do que uma criança petulante. Não vejo mérito num reinado de sangue. Nem sequer gosto da palavra. Que podes querer de mim, infeliz? Como ousas ser tão declaradamente cego? Não tenho nada para dar, a minha boca recusar-se-ia a mentir. Liberta-me, demónio, devo ir para casa.»
«Não sejas presunçosa, mulher, tu estás em casa.»
Vultos. Curioso. Pensei que o Inferno fosse mais do que isto. Mesmo que fosse, os meus olhos recusar-se-iam a ver. Típico. Tropecei num grande trapaceiro. Jamais me perdoarei. Nem sequer posso saber se este vazio é palpável ou faz parte do meu imaginário. Nunca veremos sob o mesmo prisma. «Que queres de mim, infeliz?»
«Não. Que queres tu de mim?»
Cora sentiu um ardor no meio dos olhos por causa da luz. Uma vaga de luz dolorosa que assolava todos os cantos. Ignorância. Depois, palavras.

Porque. Não. Podes. Ser. Eu.
Porque. Não. És.
Porque Não. Podes. Ser.
Bem-vinda. Às Sombras. Perséfone.

À noite, todos os gatos são pardos.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Se a viola falasse

Se a viola falasse, diria que foi trabalhada para cinco ou seis pessoas encherem uma garagem e contarem piadas. Se a viola falasse, diria que os vizinhos são um grande empecilho. Se a viola falasse, diria que não há tempo para coisas triviais como comer ou dormir (fábula nenhuma pode provar o contrário). Se a viola falasse, diria que um grupo de amigos é tudo. Se a viola falasse, diria que há sempre mais músicas. Se a viola falasse, diria que há pausas necessárias. Se a viola falasse, diria que as mãos servem para tocar e, mais importante, para aplaudir. Se a viola falasse, diria que outra viola nunca é demais. Se a viola falasse, diria que me puseste fora de mim. Se a viola falasse, diria que uma voz desafinada é melhor do que nenhuma. Se a viola falasse, diria que não há barreiras. Se a viola falasse, diria que todos servimos o mesmo. Se a viola falasse, diria que enche estas paredes. enche estas paredes. enche estas paredes. Se a viola falasse, não conseguia encontrar as palavras.

É por isso que ela não fala.

Para os meus guitarristas.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Genial

Terra deu à luz debaixo de água
Homens que não conhecem a Sorte
Homens que caminham para a Morte
Cortam o cordão umbilical
Pendem para o Bem, para o Mal
Homens buscam o genial
Genial

Abre-me as veias
Tão cheias
E diz-me

Genial
Ou animal
Afinal
Genial
Ou animal

Terra deu à luz debaixo de água
Homens que temem a Deus
Homens que lutam pelos seus
Descobrem o essencial
Anseiam vida imortal
Homens buscam o genial
Genial

Abre-me as veias
Tão cheias
E diz-me

Genial
Ou animal
Afinal
Genial
Ou animal


Genial

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Anjos de negro

Permito-me dois segundos
Tu e eu
Reflexos de nós mesmos
Perdidos num beijo
Canibal
Sonho profético
Desejo
Poético
Carnaval
De diabruras
Apetitosas conjunturas
Abarcam o real

Ardendo
Em chamas diligentes
Camas sorridentes
Vivas
Pela mão amiga
Cega e destrutiva
Da raiva
Suada de nós

Preciso de ti
Não te tolero
Amo-te
Já não te quero
Fizeste de mim
Um sem fim
De contradições
Desconhecidas
Sofridas
Comodistas
Fora de moda

Varrida
De vidros partidos
Espaço para o potencial
Tempo roubado
Sublimado
Por baixo das cinzas
Tingidas de brilho
Besuntamos às mãos cheias
Volúpia
Braços e pernas
Ventre
Adoráveis anjos de negro
Sem medo
E não meros reflexos
Inexperientes

Capazes de voar

domingo, 16 de setembro de 2007

Noite Dourada

Diários entrecruzam-se em noites de concertos
Palavras trocadas sem nexo
Parecenças flagrantes em anexo
Na música dez
Olhei para trás de viés
Tocaram-me ao de leve na anca
Na meia preta e branca
Ténue toque no meio destes apertos
Quase parecia uma carícia

Vocalista desvairado no palco
Baixista que mostra os seus dotes
Mar de cabeças sob os holofotes
O público empurra-se, ganzado
Um gajo com o lábio furado
Determinados os gestos habituais
São fãs ou verdadeiros animais
Aos saltos

Criam-se laços nesta irmandade
Suores pairam no ar
Vive-se no auge ao luar
Suga-se a seiva musical
Grito, também eu demencial
Para que tu sintas
Basta mergulhares na tinta
E gritar mais alto

A que sabe a noite dourada?...

sábado, 15 de setembro de 2007

O cão etecetra

Foi um parto difícil mas aqui está...a minha crítica social sob a forma do cão etecetra.

Caminhava por entre as gentes e parei, alguns segundos, para me lamber. Digo caminhar mas é mais como um leve saltitar de patas – tic tac tic tac – quase imperceptível. Só paro para necessidades vitais que cabem a qualquer cão que se preze. Observar. Pessoas que pensam algo e afastam o pensamento cerram ligeiramente as sobrancelhas e tremem o lábio. Fascinante.
É isto que eu faço. Vivo para os etecetras da vida. Totalmente inútil mas há mais como eu. Auto-catalogamo-nos de intelectuais. Perdemo-nos na euforia dos nadas e dos ninguéns. Esticamos o tempo até ao inverosímil pela necessidade prodigiosa de edificar o que está podre. Utopias patetas, dizem. Nova lambidela. Cá para mim, estou pleno na minha solidão. Vive-se pelos outros, porque não hei-de viver por mim mesmo? Quem me garante que alguém vai viver por mim? Por isso entrego-me alegremente ao superficial em mim. Hurra! Venham a mim, suas cadelas vadias! Venham a mim, conquistas fáceis! Vem a mim, esgoto de um raio! Não tenciono trabalhar um único dia na minha vida! Sou um autêntico fenómeno e hei-de pagar ao mundo para me ver como tal…
Entretanto, vivo de dinheiro roubado. Sou escorraçado. Ando frequentemente embriagado. Não sou grande amigo porque não tenho nada para oferecer e estou sempre lá para pedir. E o primeiro que me prove que nisto não somos todos sete cães a um osso, juro que lhe dou o meu pêlo nauseabundo (que deus poupe o desgraçado que o quiser) de mão beijada…
Além de tudo isto, gosto de afirmações categóricas. Gosto sobretudo de meter o bedelho em tudo o que não me diz respeito porque sou demasiado preguiçoso para me perscrutar a mim mesmo. Nasci para voyeur. Não posso evitar.
Não tenho grande sentido de justiça. Não. Não faço a mínima tenção de mudar. Não tenho jeito para grandes decisões. Sou humilde, na minha condição. Tic tac tic tac.
Estou permanentemente insatisfeito e as pessoas parecem estar permanentemente insatisfeitas comigo. Sou maquiavélico ao ponto de o adorar e, por isso, ando invariavelmente sem coleira. Sou, com muito orgulho, um miserável. Vida de cão...

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Ternura

Mãos esticadas no berço
Corpinho quente que procura o bater do coração
Pergunto-me, entre sorrisos...
Sabes o que te espera, sabes de antemão?...

Perfume inocente
Magia de lábios púrpura que soltam uma leve respiração...
Encosto a minha cara
Dorme o sono dos justos, meu irmão...

Estou aqui
Meu pequenino.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

O dia em que assustei o medo

Uma viagem de comboio é um poço de surpresas. Sempre gostei dos pequenos nadas que me aguardam nesse tipo de viagem, desde os passageiros, a paisagem, a lengalenga sonora da máquina ou a paz envolvente, e mesmo quando algo corre menos bem, andar de comboio, simplesmente, é reconfortante.

Esta tarde, um homem sentou-se ao pé de mim. Um homem velho e sujo. Dizia que eu era bonita. Que devia ter muitos homens atrás de mim. Demasiado perto. Dizia que queria que eu fosse com ele. Que me queria foder. Que eu não dizia nada porque também queria.


Subjugar outras pessoas tem o seu encanto. Faz-se uma pessoa sentir despida, com frio, instala-se-lhe o medo que incomoda e vai-se embora. Vaga noção de poder. Raridade.


Farta. Não é a primeira vez nem há-de ser a última. Por isso ri-me. Ri-me alto e sem mácula. Ri-me dele. Ali ficou ele, despido, com frio, com o medo que incomoda. Assustei-o e fui-me embora.

Quem diria que o medo tem medo do riso?...

Esqueletos no armário

Quando postura e atitude
São cuidadosamente copiadas
Adeus é uma palavra pesada
Para a tua doce juventude

Cala a boca
Pões-me louca

Desisti de perceber
Injustiça sem aviso prévio
Desenterrar esqueletos do armário
É morrer
De tédio

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Insaciável

Pedaços de vidas rendidas, mordidas, inofensivas
Jornadas complexas de fastidiosas corridas
Sob os segredos da pele

Olhares singulares jogam espaços vazios
Pintam-nos (sintam-nos!), apagam-nos (afaguem-nos!)
Teias de mistério em resmas de papel

Sucumbo à fragilidade imaculada dessa cara fugidia
Escrava da mente diferente que vê e que cria
Anseio sofregamente esse fel

Nasci curiosa para absorver vicissitudes
Nelas me encontro e (em mim) desmonto
Peças restituídas de fugazes virtudes

Destapar o que há de mais fascinante aviva
A minha alma deselegante e desabrida:

Insaciável.

sábado, 8 de setembro de 2007

Hoje, ao olhar para o espelho, ele viu um filho da puta arrogante. Viu um homem que combatia em qualquer luta, a qualquer custo, que apostava em grande. Viu um mentiroso treinado. Viu capacidades legítimas que saíam sem esforço. Viu um calculista que conhecia as suas melhores armas. Viu um amante compulsivo. Viu o maior inimigo de si próprio. Viu um sonhador inveterado. Viu o olhar frio de quem não tem piedade. Viu um céptico. Viu um líder. Viu o outro lado do espelho.

Gestos

Gestos são memórias de gestos
Batalhas interiores de pensamentos indigestos
Que vivem e morrem

Gestos são mais do que restos
São registos preteridos que alegremente infesto
De considerações

Gestos são provas que presto
Simulacros fugidios de fantasias que testo
Para meu próprio proveito

Gestos são rugas que empresto
Testemunhos unos e lestos
De personalidade

Ergo os meus muros
Invento gestos seguros
E sinais obscuros

Que é fabricado, que é puro
Num gesto?...

Um gesto é gesto por ser.

domingo, 2 de setembro de 2007

Devoção

Todas as partes de mim encaixam quando a música grita. Eis o momento de verdade para o qual vivo e com ele um pouco de paz.
A voz tem o dom de encher todos os lugares e despertar desejos remotos. Paralisa, seduz e caminha para trás. Solta pequenas faíscas. A mente rende-se aos seus encantos, fascinada. A partir de agora, todos os dias, vai pedir de beber.

Não me basta ouvir. Tenho que rasgar a minha garganta. É violenta a forma como ela me toca. Sem lágrimas, choro e sem sorrir, rio-me de estar possuída pela música. Os aplausos fazem-me esquecer que sou eu. Estou afogada em mim mesma.

Que pensamentos dariam boas letras. Que composições dariam boas melodias. Vejo o mundo por olhos que não são meus. No entanto, neles me vejo reflectidos. É a música que me dá consistência. É ela que me move e me dá o prazer irracional de ser eu. Enquanto ela existir, não estou sozinha.

Há quem lhe chame devoção. Devoção total e declarada. Devoção que nada pede em troca além da possibilidade da continuidade dessa companhia. Doce devoção...