domingo, 23 de setembro de 2007

Perséfone

No dia em que ele veio, Cora viu o chão abrir-se diante de si. Um pé pálido e uma mescla de cabelo ruivo selvaticamente engolidos pelo solo em rasganço. Inédito: a terra tremia. O príncipe das trevas aproximava-se.
Caindo, Cora dizia: «Sei que te julgas superior à dor e ao sacrifício dos mortais, sei que nada sabes de humildade, sei que vingas almas entregues a apetites e imprecações, sei quem tu és, senhor. Aos meus olhos, não és mais do que uma criança petulante. Não vejo mérito num reinado de sangue. Nem sequer gosto da palavra. Que podes querer de mim, infeliz? Como ousas ser tão declaradamente cego? Não tenho nada para dar, a minha boca recusar-se-ia a mentir. Liberta-me, demónio, devo ir para casa.»
«Não sejas presunçosa, mulher, tu estás em casa.»
Vultos. Curioso. Pensei que o Inferno fosse mais do que isto. Mesmo que fosse, os meus olhos recusar-se-iam a ver. Típico. Tropecei num grande trapaceiro. Jamais me perdoarei. Nem sequer posso saber se este vazio é palpável ou faz parte do meu imaginário. Nunca veremos sob o mesmo prisma. «Que queres de mim, infeliz?»
«Não. Que queres tu de mim?»
Cora sentiu um ardor no meio dos olhos por causa da luz. Uma vaga de luz dolorosa que assolava todos os cantos. Ignorância. Depois, palavras.

Porque. Não. Podes. Ser. Eu.
Porque. Não. És.
Porque Não. Podes. Ser.
Bem-vinda. Às Sombras. Perséfone.

À noite, todos os gatos são pardos.

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